Às vésperas de um ano de disputas intensas, uma das líderes da Reforma Sanitária provoca: num tempo em que o neofascismo alimenta o medo do outro, esquerda não pode ser morna. Virar o jogo exige garantir uma vida digna às maiorias – com nova política econômica
Por Sonia Fleury
Em tempos de ofensiva da extrema-direita, que atinge fortemente os sistemas de saúde, como pôr na ordem do dia uma agenda de transformação social baseada no aprofundamento da democracia e na recuperação do papel do Cuidado? A retomada de uma forte luta ideológica e a formulação de novas formas de exercício da política fazem parte do caminho – mas têm como pré-condição uma mudança de rota na política econômica e de alianças do campo democrático. Foi o que ponderou Sonia Fleury, cientista política e pesquisadora da Fiocruz, no debateA democracia em transe: debatendo as crises dos regimes democráticos no Ocidente, realizado no14º Abrascão. O texto que segue, uma adaptação de sua exposição do último dia 30 de novembro, foi transcrito e revisado em conjunto por Outra Saúdee pela autora. Está sendo publicado em parceria com o Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz. Tratam-se de apontamentos de grande relevância para os que buscam refletir criticamente sobre os desafios que se aproximam em 2026. Boa leitura!
Falar das ameaças à democracia nos remete, inexoravelmente, a tratar das ameaças à saúde. Desde o início da Reforma Sanitária, postulamos essa relação fundamental, que nos distingue muito de outros processos de criação ou reforma de sistemas de saúde. Essa vinculação entre democracia e saúde é uma marca constitutiva e fundamental da Reforma Sanitária Brasileira: quando a democracia está sob ameaça, o sistema de saúde está sob ameaça e as políticas de proteção social também. Portanto, a nossa luta é sempre muito mais que uma luta setorial – ela é uma luta global pelo sistema democrático e pelos direitos sociais e humanos.
No entanto, a questão do desmonte da proteção social não está dissociada das atuais formas de reprodução do capital, em que o predomínio do capital financeiro sobre todas as outras formas de capital implica nas grandes transformações que vivemos nas últimas décadas. Essas transformações têm ocorrido especialmente desde a última crise econômica internacional, incluindo a resposta a ela, que foi de desregulação dos mercados. Tudo isso involucrado sob a hegemonia da ideologia neoliberal que privilegia o mercado e tenta reduzir a participação do Estado na economia através da diminuição de gastos, como se a crise tivesse se originado como decorrência da presença do Estado, da proteção social e do investimento público – e não da própria dinâmica do mercado. Esse processo levou a um aumento exponencial das desigualdades no mundo, uma concentração plutocrática da renda.
A desregulação ainda tem implicações sobre a crise climática, na medida em que a acumulação capitalista enfraquece enormemente as capacidades de regulação de Estado. Isso também reorganizou o tecido produtivo, levando à reprimarização das economias menos desenvolvidas, fragilizando-as e aumentando sua dependência em relação a produtos com maior valor agregado que incorporam novas tecnologias. Tais transformações têm afetado profundamente o mundo do trabalho, tanto com a flexibilização das proteções trabalhistas quanto com a produção de milhões de trabalhadores que se situam nas novas formas de informalidade ou se convertem em população de rua. Ao mesmo tempo em que aumenta o número de trilionários no mundo, aumenta a população de trabalhadores descartáveis.
Paralelamente, nas últimas décadas, houve a emergência do enorme poder das Big Techs, cujo poder se materializa na foto da posse de Trump com a presença de todos os CEOs dessas grandes empresas, mostrando que já não há mais separação entre tais corporações e o poder político. Trata-se de um retrato do capitalismo desregulamentado, com a associação simbiótica entre o grande poder das Big Techs e um poder político de que se pretende imperial. É isso que estamos tendo que enfrentar – e vamos enfrentar em 2026.