Artigo de Cadernos de Saúde Pública chamado "Saúde e trabalho: novos tempos, novos paradigmas", dos professores Ricardo Cordeiro e Ada Ávila Assunção discute desafios da Saúde e Trabalho.
Vejam o texto
"Os saberes tradicionais são exímios para abordar as relações entre saúde e trabalho na atualidade? A perspectiva que alinhava as ideias apresentadas é de incentivar a disposição dos pesquisadores, profissionais e técnicos dos serviços a encarar os limites dos quadros teóricos e metodológicos adotados até agora, em face das mudanças articuladas à economia globalizada. Inovações tecnológicas nos processos produtivos antigos e naqueles recentemente inaugurados, perda de direitos trabalhistas e previdenciários outrora garantidos e enfraquecimento das organizações sindicais modificaram as relações de trabalho. As características do emprego, conforme será comentado adiante, geraram insegurança tanto para os empregados, quanto para aqueles que procuram uma vaga no mercado de trabalho 1,2. Duas direções estruturam este artigo: críticas aos modos de fazer pesquisa de um tempo que já passou; e indicações para a agenda de pesquisas atuais e daquelas necessárias para contornar novas problemáticas.
Nos anos 1970, pelo menos dois fatores concorreram para o início de mais uma crise do capitalismo: a queda da produtividade que vinha sendo alcançada no período anterior de crescimento ininterrupto e o processo inflacionário relacionado, entre outras questões, com o choque do petróleo, em 1973. Nesse contexto, a disputa por mercados encontrou obstáculos na produção em série e no emprego padrão, característicos do longo período fordista 2. Para competir, as empresas buscaram produzir mais, suscitando na introdução de novas tecnologias e novos modelos de organização e gestão do trabalho 3. Para diminuir os custos do trabalho, em vez do emprego típico, a reestruturação produtiva dos anos 1980 veio marcada pela flexibilização do contrato de emprego 1. Nesse sistema, a lógica é estimular o consumo, que, por sua vez, segue definidor daquilo que será produzido, e não o contrário, como na produção em série e em massa 3."
Em meio a essa transformação, perde preponderância a relação empregatícia padrão, caracterizada por emprego em tempo integral e por período indeterminado, em um posto fixo, fora de casa, instalado em empresa claramente definida e sob suas premissas, com acesso a benefícios e seguridades. Em vez da estabilidade com garantias contratuais, ganham destaque diferentes modos de vinculação, como o trabalho parcial, temporário, subcontratado, terceirizado. Essas modalidades são autorizadas pelo Estado, em linha com o ideário neoliberal, em forma de regressão e desregulamentação de direitos trabalhistas adquiridos em décadas anteriores 4.
A quebra do paradigma do emprego homogêneo e estável e suas consequências sobre a condição salarial, nos termos de Castel 5, relaciona-se com o aumento gradativo, no Brasil, da parcela sem
condições básicas de sobrevivência, da qual são exemplos os adolescentes que lavam carros, vendem doces, atuam no mercado do sexo e na distribuição e comercialização de drogas ilícitas 6,7.
Grande contingente da força de trabalho, de um lado, ocupa a maioria dos postos com pior remuneração e menor exigência de escolaridade ou qualificação profissional, dos quais são exemplos:
as categorias ambulantes, entregadores, motofretistas, vigilantes, prestadores de serviços gerais, entre outros grupos. De outro lado, em escala minoritária, trabalhadores polivalentes e multifuncionais
ocupam os postos mais bem remunerados, respondendo sob pressão às demandas durante a jornada de trabalho 7.
O crescimento significativo da participação de mulheres no mercado de trabalho veio acompanhado de desigualdades de gênero. Constrangimentos derivados de uma assimétrica divisão sexual
do trabalho refletem-se na diferença salarial entre mulheres e homens inseridos em postos similares 8.
A questão espacial assumiu novos contornos. Com auxílio das tecnologias, são desfeitas as fronteiras entre local de trabalho, domicílio, escola e lazer. Os trabalhadores foram para a rua. Não apenas no sentido figurado do termo, mas também em seu sentido literal. Na atualidade, as ruas são também locais de trabalho, que incorporam grande parte de trabalhadores e trabalhadoras informais. Nesse novo contexto, a topografia do risco é outra: parte da força de trabalho, anteriormente inserida nos tradicionais ambientes fabris, em que se registrava a maioria das ocorrências dos agravos à saúde dos trabalhadores, está exposta aos riscos do “espaço da rua”.
Atualmente, quase três quartos dos acidentes de trabalho fatais, no Brasil, ocorrem nas ruas 6,7.
No século passado, em que predominou a economia industrializada, o empregado assalariado (de fato, a força de trabalho era maciçamente composta por homens) foi responsável por realizar
operações pré-definidas em um posto fixo, no qual era maior a chance de se expor a riscos de acidentes, surdez e intoxicação por agentes químicos, para ser breve. Naquele cenário, nasceram a higiene ocupacional e a medicina do trabalho. Ambas as disciplinas desenvolveram seus métodos e técnicas, reproduzindo a concepção norteadora do processo de trabalho fordista. No Brasil, a legislação celetista definiu a assistência à saúde, centrada no consultório médico da empresa, assim como estabeleceu critérios de intervenção centrados no posto de trabalho fixo. Calcado nessa tradição, o paradigma da saúde ocupacional foi estabilizado 9.
Os tradicionais agentes de risco e limites de tolerância, tais e quais foram definidos na era industrial, apesar da adequação para monitorar os ambientes que mantêm as características existentes nas décadas anteriores, não são suficientes para abordar o universo das condições laborais dos ambientes modificados ou recém implantados; por exemplo, para monitorar a tensão resultante dos percursos velozes que caracterizam as atividades dos motofretistas. Como estabelecer, por meio de equipamentos de mensuração, um limite de tolerância para a percepção de medo ou ansiedade nesse tipo de situação? A pretexto de promover o empreendedorismo e ampliar as oportunidades de trabalho, a precarização laboral em curso é acentuada no trabalho gerenciado por empresas controladoras de plataformas digitais. Milhares de trabalhadores são atraídos para atuarem como “empresários de si mesmos”, enfrentando a desproteção do trabalho, sem garantias de repouso remunerado, férias, seguro acidentário etc. Ritmo acelerado e jornadas prolongadas estão na origem de prejuízos à saúde 10.
Quais índices vamos usar para avaliar os ambientes em que operam os trabalhadores coordenados por plataformas digitais?
Nenhuma mudança anterior causou tamanha desagregação e dispersão dos trabalhadores. Vale lembrar que as fábricas, e depois as indústrias fordistas, foram lugares de integração e subjetivação
individual e coletiva, além de lugares de socialização. Num ambiente extremamente competitivo, alastra-se um tipo de sensação permanente de insegurança, sem que seja viável a construção de
vínculos e manifestação de solidariedade 11. Trabalhando sem espaço de pertencimento, as pessoas estão enfrentando o esvaziamento de suas energias utópicas. Hipóteses relacionam essa lógica com o prevalente sofrimento depressivo 12.
Se constatamos que os saberes tradicionais são pouco úteis para abordar as atividades de trabalho emergentes, temos de encarar a necessidade de produzir quadros teóricos e metodológicos mais
relacionados à natureza e magnitude dos problemas já identificados e outros ainda pouco definidos. Nesse cenário adverso, é particularmente preocupante o engajamento de um contingente expressivo de jovens trabalhadores que, nas franjas das grandes cidades brasileiras, atuam na tênue transição do lícito para o ilícito, do legal para o ilegal, na qual a precarização se acentua ainda mais. O engajamento em atividades ilegítimas – como ligações clandestinas de água, luz, TV a cabo; desmanche de automóveis e comercialização de suas partes; comercialização de objetos e mercadorias sem documentação fiscal; distribuição e comercialização de psicoativos de uso ilícito etc. – são muitas
vezes a única opção de ganho financeiro de jovens desalentados com a falta de empregos formais. O envolvimento nessas atividades é um preditor de vulnerabilidade extremada, sinalizando o aumento
do risco de transtornos mentais e acidentes associados ao trabalho em mercados ilegais 13.
Acrescente-se ao rol das preocupações sobre objetos de pesquisa não consolidados as dimensões do racismo, capacitismo, etarismo, sexismo/LGBTfobia, entre outras, que se articulam com a precariedade laboral, justificando as pautas interseccionais. O trabalho análogo à escravidão, que tem sido encontrado aqui e acolá, exemplifica outra dimensão, materializada em situações de exploração direta de mulheres e crianças migrantes transnacionais (trabalhando na prostituição em cidades como Pacaraima,
em Roraima, ou em pequenas oficinas de costura em São Paulo) ou em trabalhadores rurais (pretos, pobres) aliciados para serem explorados na grande produção de vinho no Sul do país 13. Por
fim, vale destacar a mudança do perfil sociodemográfico e cultural da força de trabalho.
A realidade exposta neste artigo nos convida a pensar sobre as direções da investigação científica.
Se os modos de produzir mudaram e se as pessoas estão convivendo com os efeitos inéditos das condições laborais sobre a saúde, então os objetos e modos de fazer ciência são outros. Refletir sobre essas e outras conexões entre saúde e trabalho exigirá um esforço necessário para encarar os desafios epistemológicos 14.
Ações sindicais atentas aos indicadores de saúde impulsionaram avanços inquestionáveis. Chama a atenção a reversão ocorrida nos anos 1990, quando, no bojo da consolidação do Sistema Único de
Saúde (SUS), foram estabelecidas linhas de cuidado e programas de vigilância em saúde do trabalhador, de caráter público e universal 15. Evoluções nesse domínio continuam alimentando investimentos
acadêmico-científicos que orientam a elaboração de conceitos e métodos para abordar a problemática da saúde dos trabalhadores 16.
Pesquisadores estão aprimorando seus conhecimentos sobre a inventividade dos indivíduos em situação de trabalho, com o objetivo de autoproteção em face da fadiga, do risco de acidentes, lesões
ou doenças, e essas investigações centradas nos aspectos etnográficos da atividade laboral geraram esclarecimentos relevantes. Postulou-se, por exemplo, sobre a gênese do acidente nas interações entre as metas de produção e a intensidade do trabalho 17. Estudos sobre os processos psicológicos
subjacentes à atividade indicaram que não é raro os indivíduos serem impedidos de desenvolver estratégias de autoproteção construídas por meio da experiência 18. Métodos até então inéditos, no curso das pesquisas sobre saúde e trabalho, foram empregados para examinar, por exemplo, eventos de autoextermínio no local trabalho 19.
Processos e problemas antigos convivem com os emergentes. Avanços e contradições transformam práticas e geram conhecimentos que alimentam perspectivas atuais no estudo das relações entre saúde e trabalho, das quais esta reflexão é exemplo. Entretanto, essa compreensão ainda carece de inovações substanciais, se considerado o conteúdo das nossas revistas de circulação nacional, ainda fortemente ancorado no ideário da saúde ocupacional. Para evitar produzir “mais do mesmo”, conforme
jargão dos gestores dos periódicos científicos, convêm estímulos para a comunidade acadêmico-científica substituir os arcabouços teórico-metodológicos que se mostraram potentes no século
passado, mas que atualmente são insuficientes.
Thomas Kuhn 20 argumentou, em 1962, que a mudança de paradigma é a mola da produção do conhecimento científico. Ou seja, em vez de acúmulo de conhecimento, a ciência avança porque a comunidade científica é capaz de gerar novas abordagens e conceitos. Para o físico, a dinâmica do que ele denominou de “revolução científica” é motivada por compromissos acadêmicos.
Em face dessa realidade, talvez seja proveitoso produzir críticas aos modos de fazer pesquisa de um tempo que já passou. Quanto mais se esse movimento estiver embasado em experiências interessadas
em promover uma mudança de paradigma. Para tanto, é necessário incorporar na agenda de pesquisa a uberização, as atividades nas ruas, nos mercados ilegais, entre outras formas de precarização
do trabalho.
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Nós do Fórum AT saudamos…
Nós do Fórum AT saudamos esforços como os dos autores do artigo acima que convidam à reflexão crítica sobre a situação da Saúde do Trabalhador e sobre a pesquisa produzida no campo em face das grandes (globais), rápidas e intensas transformações pelas quais estamos passando.
Globalização assimétrica,, financeirização, externalização, revolução digital, precarização, crises ecológica, sanitária, política, feminização, e novos impactos. Mudanças, macro, meso e micro d e dentro e de fora do mundo do trabalho se "conjuminam" criando insegurança, medos, novos tipos de interações, incerteza, incompreensões, ameaças / perigos, riscos, acidentes e doenças sendo partes desses impactos de instalação tardia. Novos desafios ao reconhecimento de agravos e de suas relações com o trabalho cobram respostas que precisam vir da política, da ciência, dos trabalhadores, da sociedade em geral. Ampliando e indo além dos limites do desafio desenhado pelos autores.
O espaço do Fórum AT está aberto à divulgação de outros olhares abertos a esse diálogo. Mandem suas contribuições.